sexta-feira, 11 de julho de 2008

REPÚBLICA MACUNAÍMA

1889. Nascia a República no Brasil, sob um discurso moralista e transformador, que deveria estabelecer a ordem e o progresso onde reinava o atraso monárquico. E nasceu tosca, através de um golpe, ao trotar de tropas militares, tramada sem a participação do povo (ora, o povo...). Ao povo se forçou a entendê-la, aceitá-la, a acatá-la. Não necessariamente nessa ordem. E de um governo dito provisório, dois anos depois o marechal Deodoro da Fonseca se fez presidente, através das primeiras “eleições”. Eleito, em 9 meses renuncia, é substituído pelo vice, Floriano Peixoto, que o fez através de (mais) um golpe, pois não poderia assumir, segundo dizia a constituição que meses antes jurara respeitar, já que a renúncia de Deodoro se dera a menos de dois anos de governo. Governou tão duramente que ganhou o titulo de Marechal de Ferro.

1894: Do Exército, ou da Marinha, se esperava um novo golpe nas eleições, golpe que não veio, pelo menos de onde se esperava. Assumiria o primeiro presidente civil do Brasil, Prudente de Moraes, que iniciaria um novo ciclo de governos... e golpes. Aliando-se os dois mais ricos estados brasileiros de então, Minas Gerais e São Paulo, ou melhor, os seus fazendeiros mais poderosos, estes se revezaram inescrupulosamente no poder durante 36 anos, através da mais criminosa máquina eleitoral que o Brasil conheceu. Implantou-se a “degola”, a pura e simples impugnação dos opositores, o voto de cabresto, impuseram-se os coronéis, os currais eleitorais, a Política dos Governadores, a política “café-com-leite”. Montou-se uma estrutura viciada que garantia que os poucos cidadãos que votassem, cerca de 5% da população, elegessem exatamente quem os grandes cafeicultores queriam: um dos seus.

1930: Washington Luis trai o acordo e apóia outro paulista e não o já indicado colega mineiro. O racha político deu espaço a um militar sulista na disputa eleitoral: Getulio Vargas. Candidatou-se e como era oposição, não foi eleito. Não foi eleito mas tomou posse mesmo assim, através de... um golpe. E eis novamente um militar no poder, através das armas. E armas, Vargas usou muitas, de diversos calibres, uma em especial, o populismo, aliado a um discurso moralizante. Bem, quando o discurso falhava, acionava a repressão e pronto. Como todos que usurpam o poder, disse que ficaria por pouco tempo. Ficou quatro anos. Ao fim destes, se auto proclamou presidente por mais quatro, num arranjo, num artifício (ou golpe) constitucional. Ficaria até 1938, mas...

1937: Vargas, alegando proteger o país de uma “ameaça comunista”, proclama estado de sitio dá novo golpe, cria o Estado Novo e se faz presidente vitalício. E enquanto o mundo respirava aflito, vendo crescer os discursos e atos de Hitler e Mussolini, Vargas namorava com a ideologia faci/nazista. E o fazia, falando em moralidade... Por pouco não entramos na II Guerra do lado errado e por pouco Hiroshima poderia ter sido aqui. 1945 foi o túmulo de vários ditadores, inclusive o de Vargas. Mas ele voltaria em 1950, desta vez pelas urnas que tanto repudiara durante 15 longos anos. Em 54, uma bala no peito tiraria sua vida e o lançaria para a História. E seguiram-se 10 anos de tumultuadas eleições.

1964: março não trouxe apenas as águas fechando o verão. Trouxe também de volta os homens de verde e seus brasões, coturnos, cassetetes, baionetas, fuzis e porões. E o mesmo discurso salvador. Os tanques nas ruas no dia 1º de abril diziam ser verdade o que muitos, mas não todos, desejavam que fosse apenas mais uma brincadeira de mal gosto, algo comum no “dia da mentira”. O Brasil, a República, assistiam a mais um golpe na democracia, golpe que duraria duas longas décadas.

1985: quando os militares deixaram o poder, deixaram para trás o que deixa todas tragédia: sonhos e seres destroçados, famílias incompletas, muitos mortos, outros tantos desaparecidos. Mas eis que a duras penas, qual fênix, ressurge a Democracia e o povo pode novamente exercer o sublime ato da eleição. Mas o primeiro civil após 21 anos de chumbo militar, foi eleito de forma ainda indireta. E não assumiu. Morreu dias após sua posse. E deu-se mais uma caprichosa sina de nossa História tupinquim: a elevação dos vices ao cargo maior da nação.

1990: voltamos às urnas. E se fez o carnaval...

A questão é: isso tem significado realmente alguma coisa? Ao voltarmos nossos olhos, na atualidade, para um congresso que tem 25% dos seus parlamentares sob os olhares da justiça, por envolvimento com contravenções que vão desde a compra de votos, a associação ao narcotráfico; de prevaricação, a homicídios; ao vermos eleitos tantos nomes de conhecida má reputação, de discutível confiabilidade ou clara incompetência (quando não tudo isso junto); quando vemos serem reeleitos nomes que do poder já foram expulsos por crime de lesa pátria; quando vemos tantos criminosos se esquivando da justiça através de artifícios como o foro privilegiado, instrumento instituído em causa própria, quando vemos tanta lama saindo dos partidos, tanta leviandade nas entrelinhas dos discursos proclamados, tantos discursos claramente mentirosos, tantos réus no poder legislativo, impossível não nos perguntarmos: O processo eleitoral, a democracia, tem funcionado em nosso país? Mais: terá a República e a Democracia de fato algum dia existido nesta nação de Macunaímas? Ou o que assistimos nada mais é do que um teatro bufão a enganar uma nação inteira, que orgulhosamente se diz ou se pensa ser republicana?

A palavra República vem do latim res publica, e significa “coisa pública, aquilo que do povo deriva, emana, que ao povo pertence, que ao povo retorna, que do povo, de sua vontade soberana, é constituída, aquilo que, indistintamente, ao povo serve”. Vivemos numa republica de fato? Ou o que temos é uma tirania disfarçada, numa sucessão de (dês) governantes de caráter reprovável a perpetuar uma herança em forma de maldição moral que nos persegue talvez desde os idos de 1139, lá quando o português Afonso Henrique degolou o seu primeiro desafeto em busca de seu reino, na sua saga para tornar-se Afonso I, o primeiro rei do que seria Portugal? É bom lembrar: Henrique conhecia Maquiavel antes mesmo deste existir. Não empunhava somente a espada para governar, também manejava graciosamente outra arma afiada... a política. E ao que parece o desvio de caráter de D. Afonso norteou a história portuguesa e por conseguinte a de suas colônias, como o Brasil, do período colonial à Republica.

E assistimos hoje novos senhores feudais a disputar ou a defender seus reinos, ou os seus tesouros. Aliás, da União. Assistir ou ler aos jornais nessas últimas décadas tem se tornado algo no mínimo bizarro no Brasil. Para além da violência social que impera, impera também um cortejo de desfalques, de desvios, de jogatinas políticas, de roubos milionários sem fim, envolvendo o erário público e de quem dele deveria zelar. Não é de hoje que se faz de pouco rogada em meter as patas no que é da Nação, toda uma corja de criminosos disfarçados de sindicalistas, diretores escolares, vereadores, prefeitos, governadores, deputados, senadores, ministros, presidentes... Basta para isso que se faça ocupante de um cargo público com poderes administrativos ou que se possa aproximar de alguém que o seja. E desfila sobre nossos olhos um cortejo de fraudadores engravatados, de forjadas licitações, de empresas fantasmas, de intermináveis laranjas, de superfaturamentos de obras, de obras faraônicas que mesmo pagas nunca ou mal saem do chão, de contas bancárias em paraísos fiscais, de gente que vende a Amazônia ou outras riquezas nacionais ao capital estrangeiro ou que sem o menor pudor rouba verba destinada à comida de crianças carentes nas escolas públicas país a dentro, que destina outros milhões à uma vida humilhante nas inúmeras favelas abandonadas pelo Estado, ou à morte deprimente nos corredores de hospitais imundos, infectos, superlotados, sem médicos, sem esparadrapo, sem soro, sem esperança, sem nada.

Como não ficar indignado com o que se tem feito da democracia, da República, no Brasil ao longo de nossa história, desde os idos de 1889? Como não ficar enojado todos os dias, e em especial a cada quatro anos quando nos deparamos com aquele ser metido numa roupa fina, de sorriso largo numa face amistosa, de fala mansa ou teatralmente potente, a nos pedir o voto, nos prometendo, em troca, fazer do nosso inferno o paraíso e sumindo no dia seguinte a eleição, para retornar quatro anos mais tarde? Como não sentir nojo de gente que não se envergonha de destinar à frustração uma multidão de trabalhadores que precisam fazer malabarismos para sobreviver honestamente por 30 dias com um salário de fome, enquanto eles destinam a si mesmos salários momescos que sofrem correções constantes, segundo seus próprios critérios de justiça salarial? Como não se indignar ao se pagar tantos impostos escorchantes, sendo cobrados como se vivêssemos na Europa, mas vivendo como estivéssemos na África subsaariana?

O que nos choca, ou a alguns pelo menos, é ver-se a possibilidade de se colocar em cheque um sonho tão caro à raça humana, a dignidade alcançável através de preceitos como República e Democracia plena e de fato, pela ação inescrupulosa de alguns tantos, que não são barrados em seus atos, que quando barrados não são (muitas vezes) devidamente punidos, que quando punidos, muitas vezes são julgados por seus iguais e não raro, logicamente, absolvidos.

Teoria da conspiração à parte, vê-se criar no Brasil um perigoso terreno que já foi usado outras vezes por grupos de extrema direita, mundo afora, em diversas épocas da História, que embasados num discurso moralizador e salvacionista, derrubaram o Estado de Direito e estabeleceram um Estado de Exceção, denegrindo conceitos como Democracia, usando um discurso onde ela e a República seriam mostradas como uma fraqueza institucional, uma anomalia que gera ou favorece a corrupção e o caos social, uma doença para a qual bem se conhece a cura: uma cirurgia a base da espada. Grande parte dos ditadores que a História já conheceu, de Nero a Hitler, de Mussolini a Stalin, sem esquecer os que deram o golpe em 1964 no Brasil, alegavam sempre alguns pontos capitais para justificar seus pensamentos e atos: que o caos exige a ordem; que o estabelecimento da ordem exige alguns sacrifícios; que num governo forte reside a moralidade e a justiça; que elas só sobrevivem num sistema centralizador; que o papel de um governo forte é apena estabelecer a ordem, a paz; que sua função é ser apenas organizador e transitório...

2008: novas eleições. Você já escolheu em quem votar?

Josafá Santos
Historiador, Esp. em Educação
josafasantos@yahoo.com.br

04.07.2008
Vit. Da Conquista, BA

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