quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Janelas abertas

Havia cinqüenta janelas à rua naquele dia. Eram forças que devoravam minhas energias, tomavam minhas entranhas e estilhaçavam meu dia.
Que janelas eram aquelas? De onde vinham? Como chegaram ali?
Subitamente se abriram e foram me observando como se eu fosse qualquer um transeunte que estaria passando por aquela rua. Seu ar era de devassa, invasivo, de grande violência. Dissecavam minha alma como a me dizer: “eu te conheço, tu não te escondes de mim, conheço teus segredos e teus planos, sei das tuas vontades e vaidades, tuas dores, nada podes fazer que eu não saiba”. Era uma terrível sensação ver-me desnudo diante daquelas janelas que me viam por dentro. A nudez se tornava insuportável. Quem consegue estar frente a um espelho que reflete a própria alma? A abertura daquelas janelas trazia luzes que invadiam meu interior e se tornavam insuportáveis porque me fazia ver o próprio âmago, minha própria dor, meu desespero. Via as infindáveis mágoas que guardo com tanto desvelo, via minhas iras que conservo pacientemente até o dia da vingança; via os choros contidos de tanta pena de mim mesmo, via o riso cínico do amor que guardava com pavor de vê-lo solto a tomar conta de minha alma e via o temor do futuro o medo de não dar certo, de não ser aceito pelos amigos. Tudo aquilo se me mostrava claro, bem nítido, aberto naquelas cinqüenta janelas que não sabia de onde saíram, de onde vinham e como tinham se posicionado ali naquele espaço que antes era tão meu conhecido. A rua era minha antes, passava por ela todos os dias, a conhecia como ninguém, de olhos fechados era capaz de cruzá-la sabendo cada passo a ser dado, de olhos fechados, sabia de cada pedra, cada árvore, cada tudo que se encontrava naquele caminho. Cada fenda, reentrância, para mim não era desconhecido. Tudo absolutamente no seu lugar, correto, sem segredos e sem medos, sem surpresas. E, no entanto, agora, aquelas janelas abertas subitamente, vinham retirar toda a paz que eu conhecia todos os segredos que nem mesmo neles pensava toda a segurança que por tanto tempo mantive presa dentro de mim. Malditas sejam vocês que com seu espelhar fazem-me olhar para aquilo que nem mesmo sei que possuo. Com que direito vem vocês perturbar o meu sono? Com que direito vem vocês tirar-me de meu torpor, de minhas mornas tardes quentes? Acaso não sabem vocês que o olhar é tão dolorido? Acaso não sabem vocês que foi ele, o olhar, à causa primeva de nossa expulsão do paraíso? Fechem-se, deixem-me a sós, no escuro. Não quero ver onde piso, não quer ver quem sou, nem quero saber o que guardo profundo trancado dentro do peito a sete chaves, prefiro a ignorância de mim mesmo, pois assim posso sofrer sem precisar reconhecer minha parcela de culpa nesta dor.
Olho meus passos que caminham trôpegos pela rua que não mais reconheço. O cheiro que antes me era familiar, agora é outro. As janelas me miram, fitam-me completamente envolvidas em meu desespero, minha alma percorre uma tremenda noite escura, sombria descoberta de meu sono. Chamo a todos que passam pela mesma rua de irmãos, mas ninguém reconheço, estou só, solitário, entregue a própria sorte, a própria morte, a mim mesmo, desconhecido, desesperado com aqueles cinqüenta olhares que me arrancam do peito toda a ferrugem que com tanto carinho agarro-me a preservar, porque é nela que está tudo aquilo pelo que lutei a vida toda, é ali que está toda a minha história, todo o meu investimento, todo o esforço de minha vida, toda a minha personalidade, todo o meu ego, minha ferrugem. E o que tem depois? Haverá por um acaso um depois? Se me permito invadir e ser franco com aqueles misteriosos olhares, haverá outra chance? Uma renovação, um chão para pisar? Perder-me-ei no nada? Tornar-me-ei um nada? Acaso não sou um nada? Tenho algo a perder?
Uma sombra vem chegando, o sol sumindo, as janelas insistem em me desnudar, eu, perdido diante de tantos olhares não tenho mais forças para resistir, entrego-me completamente. Minha alma floresce em êxtase.

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